Emoção
declamada: uma grata visita
Por Luiz Antônio
Magalhães
No Cd "Visitando
Poemas", Flávio Di Giorgi
revive as récitas que fazia de cor em suas aulas
e eterniza sua leitura sensível e intensa.
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Flávio
Di Giorgi, inteligência e raciocínio incomuns.
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Gerações
de estudantes do Santa Cruz ouviram, perplexas, o professor Flávio
Vespasiano Di Giorgi declamar o poema O navio negreiro, de Castro Alves.
A perplexidade se devia tanto à interpretação emocionada
do libelo abolicionista quanto ao fato de Flávio recitar as 34
estrofes sem consultar o original do poeta baiano. Não se trata
de um texto qualquer. A primeira das sete partes em que o poema está
dividido contém onze estrofes compostas em quartetos eruditos,
com dois versos rimados, decassilábicos. Em tese, é o segmento
mais fácil de decorar. Na quarta parte, aparecem estrofes heterométricas,
combinando alexandrinos com hexassílabos, e aí a tarefa
fica bem mais árdua.
Árdua para os mortais comuns. Flávio Di Giorgi, decididamente,
não é uma pessoa comum. Sua espetacular memória,
ao lado de um amplo conhecimento de línguas e de uma profunda cultura
humanista, virou marca registrada entre os alunos que o conheceram. A
tradição oral se encarregava, ano a ano, turma a turma,
de fazer circular no colégio histórias sensacionais a respeito
do professor. Reza a lenda santacruzense que certa vez uma aluna, enfastiada
com a vagareza de Di Giorgi na leitura de um texto de Maiakovski, pediu
a ele um pouco mais de velocidade na interpretação. Flávio
nem piscou: chamou a estudante para sua mesa e a encorajou a prosseguir
na leitura, o que se mostrou impossível, pois o professor estava
lendo o autor russo no idioma original. Para espanto de todos, ele revelou
que traduzia o texto ali mesmo, na sala de aula, à medida que ia
lendo.
As habilidades de Di Giorgi não se limitavam ao ambiente acadêmico.
Exímio enxadrista, ele participava de desafios simultâneos,
que dificilmente perdia. O raciocínio matemático acurado
que permitia a Flávio extrair raízes cúbicas de cabeça
rendeu outra história saborosa: no início da automação
do Jóquei Clube, ele trabalhou como conferente de apostas. Sua
destreza e rapidez eram tantas que os freqüentadores passaram a jogar
não apenas nos cavalos, mas também em quem apurava mais
rápido as apostas: as máquinas ou Flávio Di Giorgi.
Ganhou dinheiro quem confiou no professor.
Flávio de fato marcou época no Santa Cruz, onde começou
lecionando Português, em 1966, 12 anos depois de se formar na Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências da Universidade de São Paulo.
Filosofia, Teoria do Conhecimento e História das Religiões
foram outras disciplinas ministradas no Santa por ele, que também
deu aulas de Latim na Universidade de São Paulo, e de Semiótica,
Teoria da Comunicação e Grego para estudantes dos cursos
de Letras e Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
Autodidata
em um sem número de idiomas, Di Giorgi aprendeu italiano ainda
pequeno, com o pai. Depois foi a vez do latim e do grego, no seminário.
Inglês, francês e alemão são outras línguas
nas quais tem fluência. Dos demais idiomas - e aqui não
vai exagero algum - Flávio possui pelo menos algum conhecimento.
Em um episódio familiar, passeando pelo centro de São
Paulo, o professor entrou em uma pastelaria, ouviu o que não
quis, entendeu, e disse o que quis - tudo em chinês, para assombro
de sua filha Raquel, companheira de passeio, então com 10 anos
de idade. Durante uma temporada que passou no Leaster B. Pearson United
World College, no Canadá, Flávio circulou entre os alunos
provenientes de mais de 100 diferentes países com grande desenvoltura.
Comunicação, decididamente, não era o seu problema.
O professor emocionou um estudante africano que confessou jamais ter
encontrado alguém fora de sua tribo que conhecesse sua língua
nativa, na verdade um dialeto. Pois Flávio Di Giorgi a conhecia. |

Amplo
conhecimento de línguas e profunda cultura humanista de Di
Giorgi sobressaem em qualquer conversa. |
Línguas à
parte, uma das maiores paixões de Flávio, senão a
maior, é a poesia. Declamada, é bom que se diga logo. Um
ex-aluno do Santa, saudoso das leituras e inconformado com a falta de
qualquer registro da sensibilidade do professor nesta seara, teve a feliz
idéia de propor a realização de um CD contendo uma
coletânea de poemas declamados por Flávio. Foi em outubro
do ano 2000, durante um encontro casual, em uma festa, que Candido Botelho
Bracher sugeriu a Beatriz Di Giorgi, outra das quatro filhas de Flávio,
a gravação do disco. Beatriz gostou, mas achou que se tratava
de mais uma dessas conversas estéreis que acontecem em eventos
sociais. Dias depois, porém, Candido a surpreendeu ao telefonar
cobrando informações sobre a receptividade do pai de Beatriz
à idéia. Começava então a nascer um projeto
que culminou no CD duplo "Visitando Poemas", que está
sendo lançado no cinqüentenário do Santa Cruz.
Ex-alunos vão
ouvir de novo
os versos de Castro Alves na
voz de Flávio Di Giorgi:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
... Mas é infâmia de mais... da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! Arranca este pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta dos teus mares! |
Hoje diretor executivo do Banco BBA Creditanstalt, Candido Bracher lembra
que começou a tomar gosto por poesia nas aulas de Flávio
Di Giorgi, no Santa. Além de O navio negreiro, Candido gostava
especialmente da interpretação do professor para a Fala
aos Pulsilânimes, de autoria da poetisa Cecília Meirelles,
que também está presente no "Visitando Poemas".
Segundo Candido, a leitura era precedida por um comentário ferino
de Flávio sobre a relação direta entre a capacidade
de as pessoas se indignarem e a qualidade das pessoas. "Outro poema
que eu gostava muito de ver o Flávio declamar era o Ainda uma vez
- Adeus!, do Gonçalves Dias", conta Bracher.
Da troca de telefonemas entre Beatriz e Candido até chegar na versão
final, sonorizada, dos 32 poemas de 10 autores, foi uma longa jornada.
De outubro de 2000 até o início de 2001, as conversas entre
Bracher e a família Di Giorgi se tornaram mais freqüentes
e começaram a envolver também o professor Luiz Eduardo Magalhães,
diretor geral do Santa Cruz, e Teresa Bracher, esposa de Candido, que
passaram a colaborar intensamente na transformação da idéia
inicial em realidade. Luís Fernando Angerami, marido de Beatriz,
professor da Escola de Comunicação e Artes da USP tornou-se
o diretor artístico do projeto e o próprio Candido, o diretor
executivo.
Luís Fernando explica que quase tudo foi gravado entre fevereiro
e setembro de 2001, mas só em junho de 2002 a edição
dos CDs foi finalizada. O trabalho consumiu 450 horas em estúdio
e passou por várias fases. Primeiro, a escolha dos poemas. Foi
o próprio Flávio quem selecionou os textos e autores, com
algumas sugestões de suas filhas e da esposa, Maria Edith.
Quem conhece Flávio Di Giorgi dificilmente o imagina em um estúdio
profissional. Acostumado com as salas de aula ou auditórios ainda
maiores, onde profere suas palestras, o professor é um grande orador.
A frieza do estúdio e a falta de platéia são fatores
que causaram alguma apreensão na família Di Giorgi: como
ficaria o resultado?
Em primeiro lugar, o estúdio foi escolhido a dedo. Márcia
Leal, produtora executiva do projeto "Visitando Poemas", explica
que as gravações aconteceram, paradoxalmente, no pequeno
e tranqüilo estúdio Quorum. Na impossibilidade de reproduzir,
com a qualidade que um CD profissional enseja, um Flávio "autêntico",
movimentando-se na sala de aula entre os estudantes, a opção
foi fugir dos estúdios mais movimentados, nos quais o entra e sai
de pessoas poderia dispersar a atenção do professor.

Di Giorgi,
o memorioso: capacidade de lembrar, tema da aula da lousa ao fundo,
causava assombro em seus alunos.
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Luís Fernando
acompanhou todas as gravações e conta que Di Giorgi ficou
à vontade. Declamou quase tudo sem recorrer aos textos originais,
à disposição para eventual conferência. Também
não deixou de fazer comentários sobre o que lia. O público
normalmente se limitava ao próprio Luís Fernando e a Jeff
Molina, técnico responsável pelas gravações,
que nunca tinha tomado contato com poesia declamada e que a partir daquela
breve experiência passou a se interessar por poemas. Ninguém
passa por Flávio impunemente.
Quando os primeiros resultados do trabalho começaram a surgir na
forma de CDs pilotos, Luís Fernando Angerami teve a idéia
de propor a sonorização dos poemas. Todos os envolvidos,
principalmente Flávio, gostaram. O professor lembrou que os gregos
antigos costumavam declamar com fundo musical e a experiência foi
em frente. Angerami partiu então para uma pesquisa em diversos
acervos de efeitos sonoros. Ao fim e ao cabo, sintetizador e violão
foram usados nos sons que acompanham as leituras, executados por Jeff
Molina e Bira Tolentino. Com a sonorização, porém,
o trabalho de edição ficou ainda mais complicado. Para cada
minuto de poema gravado, Angerami calcula que foram gastos na edição
cerca de duas horas.
Depois de tudo, "Visitando Poemas" está pronto e é
um convite de duplo sentido. Os ex-alunos que sentiam saudades das leituras
de Flávio estarão, como ele mesmo, revendo velhos conhecidos
- os poemas, O navio negreiro à frente. Aos que não tiveram
a sorte de acompanhar as aulas do professor e a todos que não têm
muita intimidade com esse gênero literário, o convite é
justamente para conhecê-los melhor - a poesia e a interpretação
de Flávio Di Giorgi. É difícil ficar imune aos dois.
Poemas
e autores
por Flávio Di Giorgi
volume
1
|
Vulnerabilidade
Liberdade
Fernando Pessoa
O impossível carinho
Manuel Bandeira
Dobrada à moda do Pôrto
Fernando Pessoa |
Ausência
Vou-me embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira
Profundamente
Manuel Bandeira
Estrela da manhã
Manuel Bandeira |
Plenitude
Soneto 4
Luiz de Camões
Eterno
Carlos Drummond de Andrade
Aspiração
Carlos Drummond de Andrade |
Impotência
Confissão
Carlos Drummond
de Andrade
Andorinha
Manuel Bandeira
Ser
Carlos Drummond
de Andrade
Vida obscura
Cruz e Souza |
Cólera
além da ira
O navio negreiro
Castro Alves
Lisbon revisited
Fernando Pessoa
Fala aos Pusilânimes
Cecília Meirelles |
volume
2 |
Metamorfose
Poema enjoadinho
Vinícius de Moraes
Ismália
Alphonsus de Guimaraens
Mar portuguez
Fernando Pessoa
Retrato
Cecília Meirelles
|
Transcendência
Amar
Carlos Drummond de Andrade
Procura da poesia
Carlos Drummond de Andrade
Autopsicografia
Fernando Pessoa
Antífona
Cruz e Souza |
Vivência
amorosa
Madrigal tão engraçadinho
Manuel Bandeira
Ainda uma vez - Adeus!
Gonçalves Dias
Campo de flores
Carlos Drummond
de Andrade |
Reconhecimento
do humano
O desespero da piedade
Vinícius de Moraes
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
Poema tirado de uma notícia de jornal
Manuel Bandeira
Especulações em torno da palavra homem
Carlos Drummond de Andrade
Mundo grande
Carlos Drummond de Andrade |
|