No
rebuliço da memória
Por Alejandro
Miguelez
Histórias
dos primeiros anos de Pe. Corbeil recompõem seu sorriso e
revelam o nascimento do Colégio Santa Cruz, que fundou em
1952 e dirigiu por 40 anos.
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A alegria
de viver de padre Corbeil perpetuou a imagem de seu sorriso generoso.
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A memória é
matéria fugaz. Ocupam-na, dispostas de forma pouco conhecida, nossas
vivências mais significativas; mas também, na mesma hierarquia,
os registros mais triviais de nossos sentidos: vozes antigas, sabores
de frutas suculentas, paisagens esplêndidas, conversas vagas, trechos
de canções, pessoas, perfumes errantes, palavras...
Vasculhá-la em busca de resposta objetiva exige transigência
com o rebuliço de lembranças que se levanta, muitas delas
absolutamente impertinentes. Mas também leva tempo e, acima de
tudo, demanda enorme força de vontade.
Pe. Corbeil, fundador do Colégio Santa Cruz e seu diretor durante
40 anos, quis dedicar grande parte do tempo que lhe restava a essa atividade.
Com quase 80 anos, sadio e vital, aposentou-se e pôs-se a escrever
e editar suas memórias, sem perder a chance de aprender informática,
viajar e jogar golfe com os amigos.
Desde sua morte, em 23 de dezembro de 2001, o silêncio de seu sorriso
generoso tem se sentido. Na apostila que traz suas memórias é
possível reencontrá-lo, imerso no grande esforço
despendido de síntese histórica e cronológica não
só de uma vida, mas sobretudo de Santa Cruz, a Congregação
e o Colégio.
Apresentamos, a seguir, uma seleção de relatos inspirada
nas passagens em que o valor emotivo e prosaico, mesmo à revelia
do disciplinado autor, transparece, repetindo histórias tantas
vezes contadas por Corbeil nos corredores, refazendo sua trajetória
e recompondo sua personalidade e seu sorriso. As informações
sobre a história da Congregação e do Colégio
foram utilizadas em outras seções desta revista.
Jean, como um irmão gêmeo
Lionel
Corbeil nasceu em Montreal dia 15 de janeiro de 1914, quinto de uma
família de sete filhos. Seu pai, Emile, profundamente religioso
e excelente administrador, chegou a ser o maior fabricante de sapatos
do Canadá. Sua mãe, Gertrude, faleceu quando Lionel
tinha 11 anos de idade. De ambos, Lionel guardava vívidas lembranças,
registradas comgratidão em suas memórias. Entre os irmãos,
destaca-se a afeição por Jean que, como padre de Santa
Cruz, contribuiu muito com as obras de Lionel no Brasil. "Meu
irmão Jean era dois anos mais velho do que eu. Fomos educados
como gêmeos. Em casa, partilhamos o mesmo quarto. |

Padre
Jean, irmão de Corbeil: companheirismo para toda a vida.
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Fomos juntos internos
no Colégio Laval, dos Irmãos Maristas. Depois, aos 10 anos,
eu fui para o Colégio Notre Dame, dos Irmãos de Santa Cruz,
frente ao oratório São José. Encontrei-me de novo
com ele dois anos depois, no Seminário Santa Cruz, onde firmei
minha vocação sacerdotal e religiosa, e continuamos juntos
os estudos com os Padres de Santa Cruz até a ordenação.
As afinidades de ideais e a amizade entre nós eram tão grandes
que, ao me ver partir para o Brasil, Jean sentiu a necessidade de adotar
meu apostolado".
Cirurgião São José
Aos
18 anos, Corbeil ingressou no noviciado, onde pôde se dedicar
à oração, ao estudo - de filosofia, ciências
e letras - e ao hóquei! Corbeil sempre relatava a contusão
que tivera, ao praticar esse esporte, no osso da bacia. Após
consultar renomado especialista, a cirurgia parecia inevitável.
Seu colega (hoje beato) Irmão André, contudo, recomendou
com bom humor: "Seja operado por São José: cura
rápido e custa barato". Deu-lhe, então, uma medalha
de São José e indicou que a esfregasse na região
dolorida com um pano, para não irritar a pele. Corbeil assim
procedeu e esqueceu-se do assunto. Um ano depois, já no primeiro
dos quatro anos de teologia, outra lesão o reconduziu ao médico
especializado que, diante de novas radiografias, reconheceu a cura.
Corbeil se surpreenderia para sempre: "Nunca mais tive dor nessa
perna, até hoje, com meus 80 anos de idade".
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Devoto
de São José e bem-humorado, irmão André
foi beatificado em 1982. |
Três padres
para o Brasil
Apenas quatro anos após sua ordenação, dois deles
como professor de adolescentes e outros dois dedicados à administração
e à ação católica, Corbeil foi convidado a
fundar a Congregação de Santa Cruz em São Paulo.
Sem hesitar, aceitou a missão e solicitou a liberdade de escolher
os outros dois padres que seriam convidados. Pedido concedido, o modo
de escolher seus colegas foi muito revelador. Ao invés de selecionar
as duas pessoas, concentrou-se na escolha de uma delas: padre Oscar Melanson,
"bom amigo, em quem confiava muito por ser um bom religioso, honesto,
espiritual, inteligente, alegre e excelente companheiro". Depois
de o amigo aceitar o convite, Corbeil delegou-lhe: "Eu te escolhi;
você escolha o terceiro". Dias depois acatou a escolha do colega:
padre Guilherme Dupuis, "bom religioso, amável, de bom relacionamento
e grande entendedor de música".
Viagem, flagrantes da guerra
Montreal, estação central de trens, dia 8 de dezembro de
1943: "A despedida foi muito emocionante. Meus familiares tinham
lágrimas nos olhos. Para nós que partíamos e para
todos que ficavam, o Brasil era muito distante e também desconhecido".
Em anos de guerra, as viagens de navio tornavam-se perigosas. Como viajar
de avião era raro, a saída mais próxima para São
Paulo era a distante cidade de Miami. Os primeiros cinco dias se consumiram
nesse trajeto, com paradas em Nova Iorque e Washington. Foram necessários
mais oito dias de espera para conseguir lugares para o vôo: "Naquele
tempo os aviões comerciais eram pequenos, os famosos DC-3 de dois
motores, com lotação de apenas 21 passageiros - e os militares
tinham prioridade".
Por
causa da guerra, os aviões não tinham autorização
de viajar à noite, o que fazia do trecho até o Rio de
Janeiro uma longa aventura de cinco dias. Na segunda noite, Corbeil
registra a surpresa do canto das cigarras: "Para quem saiu da
neve do inverno do Canadá dias antes, o contraste era muito
forte". Ao passar por Natal (RN), no penúltimo dia, Corbeil
observa: "Descemos numa longa pista, muito movimentada. No aeroporto,
havia muitos soldados americanos pois era a rota dos aviões
de guerra dos Estados Unidos: Natal, Dakar na África, para
chegar depois à Europa". |

Expansivos,
os religiosos canadenses eram conhecidos como "padres cantores".
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Cidade maravilhosa
Dia 26 de dezembro. Após o jantar oferecido pelo embaixador em
sua casa, já refeitos da viagem, os padres põem-se a cantar
ao piano o folclore canadense. A apresentação soou tão
agradável que o embaixador os convidaria a passar o ano novo no
Rio de Janeiro, aproximando-os para isso do Major Kenneth McCrimmon, que
os hospedaria até dia 8 de janeiro em seu casarão. Esse
encontro e a amizade decorrente seriam providenciais: "O Major, membro
diretor da maior companhia canadense fora do país - a famosa Brazilian
Traction de Toronto, conseguiu a doação do terreno do Colégio
Santa Cruz".
São Paulo, 1944
Convidados pelo arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar
Afonseca e Silva, para fundar uma paróquia operária e ajudar
na fundação da universidade católica, os padres trataram
logo de aprender o novo idioma e conhecer a cidade. Entre essas primeiras
lembranças, Corbeil escreve suas impressões sobre São
Paulo: "É uma grande cidade cosmopolita, de um milhão
e trezentos mil habitantes, um pouco menor do que o Rio de Janeiro, capital
do país. São Paulo, situada a mais de 700 metros de altura,
é mais interessante para se viver e trabalhar graças ao
clima agradável. Os paulistanos nos parecem dinâmicos e sérios.
Mais antiga que Montreal, acabam de festejar o 390° aniversário
da cidade. Seus arranha-céus, bem numerosos, são de um estilo
moderno ousado e interessante. Maior cidade industrial do país,
até com metalúrgicas, exporta muito café. No verão,
o sol brilha quase todos os dias. Lá pelas 16h ou 17h, as nuvens
pretas aparecem, chove intensamente mas por pouco tempo, e o sol vem nos
sorrir de novo."
Paróquia do Jaguaré
Dois dias após a chegada em São Paulo, os padres foram apresentados
a Henrique Dumont Villares, presidente da Cia. Imobiliária Jaguaré,
que os convidou a fundar uma paróquia e dirigir uma escola na futura
população do bairro industrial e residencial que se formava,
oferecendo terrenos, casas e auxílio para erguer a igreja. Apesar
de Jaguaré ser, na época, bairro periférico ("12
quilômetros do centro, por estrada de terra") e ermo (minguada
população de 800 habitantes), os padres logo se interessaram
por essa proposta, percebendo o rápido crescimento da cidade de
São Paulo.
Dois anos depois, mudam-se para a recém construída residência
no Jaguaré: "As plantas foram realizadas por um jovem arquiteto
de grande talento, Dr. Villanova Artigas. Tudo de vidro do lado sul, com
seis quartos, uma sala muito grande... Que beleza de casa".
As atividades no bairro nunca cessariam: pequena clínica de saúde,
abertura da escola... Mas a grande obra, a igreja, não saía
da planta. Somente após a doação do aplainamento
do terreno, em setembro de 48, a construção começa.
Em
dificuldades econômicas, os engenhosos padres organizaram uma
pequena fábrica de lamparinas de parafina, "pois, nas
igrejas do Brasil, queimavam-se velas de cera compridas que entortavam
com o calor das outras e deixavam o ambiente muito sujo... Essa fabricação,
que aprendemos durante nosso noviciado, ajudou durante anos a nos
sustentar e manter nossas obras apostólicas".
Em 51, a igreja seria aberta ao culto. O término da construção
de São José do Jaguaré ficou para 67. |

A conclusão
da igreja de São José do Jaguaré exigiu grande
esforço dos padres de Santa Cruz. |
Aplausos universitários
Assim que soube dos dois anos de experiência de Corbeil na Ação
Católica do Canadá, o arcebispo de São Paulo, já
o cardeal Motta, tratou logo de aproveitá-la para o incentivo,
no Brasil, desse importante movimento de propagação dos
valores católicos. No início de 1945, Corbeil é nomeado
Assistente Geral da Juventude Universitária Católica (JUC).
"Estava muito confiante e entusiasmado", registra, dedicando-se
com afinco a suas novas atividades junto aos jovens de 17 a 25 anos: reuniões,
lançamentos de boletins e revistas, criação de uma
editora católica, a Fides, conferências sobre teologia e
moral, retiros, fundação da JUC feminina, encontros nacionais...
Em junho de 46, voltando de sua primeira viagem ao Canadá depois
da chegada ao Brasil, Pe. Corbeil receberia mostras do resultado desse
esforço: "Ao descer no aeroporto de Congonhas, ouvimos aplausos
e gritos de alegria. Os passageiros ficaram estupefatos. Eram meus universitários
da JUC que vieram me receber com meus dois estimados colegas".
Também fruto desse trabalho foi o interesse de alguns jovens brasileiros
em ingressar na Congregação de Santa Cruz. José Amaral
de Almeida Prado, ordenado em 53, foi a primeira vocação
da Congregação na América do Sul.
Sonhos de Colégio
Membros de uma Congregação de educadores, os padres de Santa
Cruz deram atenção especial ao apelo do cardeal Motta, arcebispo
de São Paulo, que afirmava, desde janeiro de 46, preferir a fundação
de um colégio a uma nova paróquia. A idéia ia virando
ideal, projeto, esboço de sonho, mas não era realizável
imediatamente, o que ficou demonstrado com a recusa da Congregação
em atender a sugestão do arcebispo de adquirir um colégio
tradicional que estava à venda: "Fiquei contente pois não
gostava desse tipo de colégio, antigo, com bandeira na rua. Sonhava
com um colégio novo, moderno, arejado, com um grande terreno e
métodos pedagógicos avançados".
Em dezembro de 48, com a visita dos Superiores de Santa Cruz ao Brasil,
cardeal Motta teria a oportunidade de insistir pessoalmente na importância
da fundação do colégio, com a qual os Superiores
mostraram-se claramente favoráveis. "O cardeal oferecia uma
casa gratuita da diocese para iniciar; os amigos se comprometiam a colaborar
financeiramente; a Cia. canadense Light de São Paulo se mostrava
favorável a meu desejo de solicitar a doação de um
de seus terrenos para a construção de nosso futuro colégio".
Estavam cumpridas as condições do sonho grande: "Um
colégio moderno, com linhas arquitetônicas simples, arejadas,
no meio de belos jardins... uma comunidade escolar feliz, comunicante,
ativa... uma escola que seria a segunda casa dos meninos... uma escola
que respeitasse a imaginação, a inteligência, os dons
criadores, que instigasse o espírito da pesquisa e a liberdade
dos jovens... uma escola que permitisse ao professor a satisfação
de realizar-se profissionalmente".
Em março de 1952, fundava-se o Ginásio Santa Cruz em uma
casa emprestada pela Curia Metropolitana na Avenida Higienópolis,
890.
No dia 18 de dezembro de 1953, a Congregação recebia a doação
da São Paulo Light and Power, sucursal da Brazilian Traction, de
um terreno de 50 mil metros quadrados situado na atual localização
do Colégio, no Alto de Pinheiros.
Construção
dos primeiros pavilhões do Colégio Santa Cruz: sonho
realizado.
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