COMENTÁRIO DA UNICAMP SOBRE A PROPOSTA

A proposta da prova de redação do Vestibular 2002 da Unicamp solicitou aos candidatos uma dissertação em que o tema – “trabalho” – deveria ter sido analisado levando-se em conta fundamentalmente sua contraditória avaliação histórica. O enunciado “Trabalho: fator de promoção ou de degradação” sinaliza que duas possibilidades conflitantes entre si deveriam ter sido consideradas. O candidato poderia ter tomado partido pela tese de que o trabalho é um fator de promoção ou, alternativamente, pela tese de que o trabalho degrada. Poderia ainda ter adotado uma posição de meio-termo, considerando que no trabalho há tanto promoção quanto degradação. Em qualquer dessas hipóteses de desenvolvimento, entretanto, esperava-se que as duas posições tivessem sido claramente consideradas e comparadas, o que significa que o candidato deveria ter previsto possíveis contra-argumentos para sua tese e refutado possíveis objeções.

Esperava-se ainda que os candidatos tivessem percebido, a partir da leitura da coletânea de fragmentos, que, ao longo da história, diferentes (e, eventualmente, conflitantes) valores religiosos, sociais, econômicos e morais foram associados ao trabalho. Essa percepção deveria ter impedido que o candidato tivesse optado, por exemplo, por uma defesa incondicional (e, portanto, ingênua) do caráter dignificante do trabalho, sem considerar os aspectos que são ideológicos nessa visão positiva. Da mesma forma, ele não poderia ter optado por uma discussão particularizada do tema, considerando somente questões atuais em que o trabalho figura como fator de degradação. Enfim, para responder à proposta, o candidato deveria ter apresentado sua posição como resultado de uma argumentação em que ficasse evidenciada a percepção da complexidade do tema e de suas múltiplas dimensões.

Apresentaremos a seguir alguns exemplos de redações de diferentes faixas de notas para que possamos analisar como os candidatos responderam à tarefa proposta.

O povo e o trabalho

Desde a Revolução Industrial, advento histórico que consolidou o poder da burguesia no mundo capitalista, o trabalho tem sido a base da economia global. Nessa época, surgiram inúmeras leis, sindicatos e até religiões a fim de pregar o trabalho como essencial para o ser humano e o lucro divino – doutrina calvinista. Entretanto junto a esse crescimento da mão-de-obra assalariada surgiram as péssimas condições a que eram submetidos homens, mulheres e inclusive crianças com jornadas duplas de serviço e uma remuneração deplorável, vivendo em profunda miséria, fato que sobreviveu aos tempos e ainda hoje é combatido.

Deve-se observar, primeiramente, que a importância do trabalho vem crescendo absurdamente e, com isso, tem-se um mercado saturado procurando por pessoas as mais qualificadas possíveis excluindo a grande parte da população sem acesso a uma boa formação. Assim, surge a classe operária, pessoas que, geralmente por motivos financeiros, não possuíram oportunidade de estudar e conseqüentemente não permitem que seus filhos ingressem nas escolas, pois estes tem que ajudar com o faturamento ao mísero salário da casa.

Como conseqüência dessa ignorância e má formação dos trabalhadores, eles vivem em condições sub-humanas de exploração sendo encarregados de um serviço bruto e pesado por um período de serviço muito superior a seus chefes de maior qualificação, já o salário é inversamente proporcional a esta carga horária: quanto mais se trabalha, menos se ganha.

Além disso, ainda se deve ressaltar a prática ilegal do trabalho infantil. Facilmente se encontram nas ruas crianças no semáforo vendendo doces, meninos com menos de dez anos a engraxar sapatos, ou até mesmo vivendo em regimes de semi-escravidão no interior do país. Este fato é mais um resultado da pobreza em que o povo está mergulhado: os pais, sem opção, preferem fazer de seus filhos precoces trabalhadores ganhando cinco reais em média por dia a vê-los estudando e ganhando quinze reais mensais do governo por criança.

Concluindo, as pessoas de baixa renda trabalham sob condições precárias desde os primórdios do capitalismo industrial sendo o trabalho um fator necessário, porém degradante em suas vidas, pois se esforçam a vida toda para tentar obter no mínimo o sustento da família e tendo como resultado apenas marcas de uma vida sofrida e cruel, além de uma aposentadoria que não os dá nenhuma vantagem após um longo período de sacrifícios.


Comentários
O candidato defende, nesta redação, a tese de que o trabalho degrada, privilegiando a perspectiva negativa incluída no título da proposta: o trabalho é visto exclusivamente como fator de degradação. Note que, em nenhum momento, é mencionada a visão contrária, indicada pelo próprio título da proposta, de que o trabalho pode também ser percebido como fator de promoção. Como já foi dito no comentário geral do tema A, o candidato poderia ter tomado partido pela tese de que o trabalho degrada; o que se esperava, entretanto, é que, ao optar por essa via, ele não desconsiderasse a posição contrária, isto é, a avaliação do trabalho como atividade dignificante, ainda que somente para rebatê-la. Perceba que isso não foi feito.

Não se pode dizer, entretanto, que o candidato tenha descumprido inteiramente a tarefa proposta pelo tema. Ele considera o problema do trabalho, apresenta-o como atividade degradante, e usa elementos da coletânea em sua argumentação. No primeiro parágrafo, introduz o tema por meio de uma rápida abordagem histórica, em que se percebe uma leitura do fragmento 2. A Revolução Industrial é apresentada por ele como o evento histórico que teria consolidado o trabalho assalariado (e sua crescente exploração) como base da economia global. A partir do segundo parágrafo, o candidato passa a discutir situações concretas atuais em que o trabalho figura como atividade degradante. No segundo e terceiros parágrafos, apresenta um problema relativo à mão-de-obra desqualificada no mercado atual. No quarto parágrafo, focaliza a questão do trabalho infantil, apresentada pelo fragmento 11 da coletânea. No quinto parágrafo, a conclusão, retoma a idéia inicial de que a situação degradante do trabalhador assalariado, inaugurada nos “primórdios do capitalismo industrial”, perduraria até hoje. Na verdade, o candidato não foi inteiramente bem sucedido na consideração da complexidade do tema, que demandava uma abordagem mais ampla, menos particularizada. Em nenhum instante o candidato supõe, por exemplo, que seu interlocutor possa não compartilhar de sua opinião a respeito do caráter degradante do trabalho. Seu texto não prevê um leitor que, diferentemente dele, possa interpretar o trabalho como atividade dignificante, circunstancialmente (e apenas circunstancialmente) prejudicada por práticas de espoliação que não estariam diretamente relacionadas à idéia do trabalho em si, mas à questão, antes histórica, da opressão de classes.

Além disso, podemos observar pelo menos dois outros problemas, derivados desse primeiro: a ingenuidade da argumentação e a gratuidade de alguns argumentos.

O candidato repete argumentos do senso comum ao contrapor, de forma excessivamente esquemática, patrões e empregados, afirmando, por exemplo, que “quanto mais se trabalha, menos se ganha”. Ainda que essa afirmação possa encontrar respaldo na experiência cotidiana do candidato (e de todos nós), ela destoa de pelo menos dois fragmentos da coletânea, que denunciam que a escravização ao trabalho não está diretamente relacionada à classe social. O fragmento 2 (que introduz a idéia de “direito à preguiça”) e o fragmento 6 (que menciona a “direito à desconexão”) indicam que a degradação (potencialmente) exercida pelo trabalho não respeita hierarquia: atinge trabalhadores de diferentes grupos e qualificações. A simplificação evidencia, pois, uma leitura apressada (ou muito superficial) da coletânea de apoio. Ora, como sempre insistimos, a qualidade da leitura dos textos fornecidos é um dos aspectos mais valorizados na atribuição de pontos no critério coletânea. Embora o candidato não fosse obrigado a utilizar todos os elementos da coletânea no desenvolvimento do seu texto, seria fundamental que os considerasse, pelo menos como balizadores da discussão. Caso ele optasse, conscientemente, por desconsiderar todos esses fragmentos, teria alternativamente de demonstrar uma boa leitura de pelo menos um dos fragmentos que pudessem ser usados para sustentar sua tese, como os fragmentos 5; 7; 8 e 10. Isso também não foi feito pelo autor deste texto.

Observe que a evocação da Revolução Industrial não exerce nenhuma função argumentativa. Aparece apenas como ilustração, cujo objetivo seria localizar historicamente o início de um processo de degradação do trabalhador assalariado que, segundo o candidato, perduraria até os dias de hoje. A gratuidade se torna evidente porque os problemas por ele relatados – e em torno dos quais organizará toda a sua argumentação – já existiam mesmo antes da Revolução Industrial. O candidato explora principalmente duas situações em que o trabalho figura como atividade degradante: a exploração da mão-de-obra desqualificada e do trabalho infantil (Fragmento 11). No entanto, nenhuma dessas formas de exploração é conseqüência direta da Revolução Industrial, pois ambas constituem práticas observadas desde sempre. As “péssimas condições a que eram submetidos homens, mulheres e inclusive crianças com jornadas duplas de serviço e uma remuneração deplorável, vivendo em profunda miséria” não “surgiram” com a consolidação do “poder da burguesia no mundo capitalista”. Existiram, em todos os tempos, inclusive nos inúmeros regimes escravocratas que se sucederam ao longo da História.

A mesma gratuidade pode ser observada na referência ao calvinismo (doutrina protestante que pregava, entre outras coisas, o trabalho como uma forma de servir a Deus) A idéia, que poderia conduzir ao questionamento dos valores que foram historicamente agregados ao trabalho, acaba também por ficar sem nenhuma função no texto, já que não é desenvolvida, nem relacionada com a discussão do tema. O texto teria sido sem dúvida muito mais bem sucedido se o candidato tivesse explorado melhor os pontos históricos (Revolução Industrial, calvinismo) apontados na introdução e tivesse avaliado, por exemplo, quais forças (econômicas, sociais etc.) seriam responsáveis pela manutenção da situação de degradação do trabalhador nos dias atuais. Em resumo, a seleção e o uso de um determinado fragmento deveriam servir para sustentar uma determinada opinião ou posição, e não apenas para o cumprimento de uma tarefa, como parece ocorrer no texto deste candidato.

Além dos problemas relativos ao desenvolvimento do tema e à apropriação da coletânea, percebe-se que o candidato não domina integralmente a estrutura dos textos dissertativos. Sua dissertação pretende provar que o trabalho é degradante pela simples justaposição de exemplos ou situações concretas que ilustrariam sua hipótese. Não há uma exploração em profundidade dos exemplos apresentados, nem o confronto com possíveis contra-exemplos. Seu texto não progride, não avança argumentativamente: é repetitivo e redundante. Depois de já ter feito referência ao trabalho infantil no segundo parágrafo (“...não permitem [a classe operária] que seus filhos ingressem nas escolas, pois estes têm que ajudar com o faturamento ao mísero salário da casa.”), o candidato introduz novamente o assunto no quarto parágrafo como se a ele estivesse se referindo pela primeira vez (“Além disso, ainda se deve ressaltar a prática ilegal do trabalho infantil.”). Em alguns momentos, seja por inabilidade no uso de elementos coesivos (conjunções, locuções prepositivas, advérbios), seja pela ausência de uma relação lógica entre conteúdos, fica o leitor sem saber o que o candidato queria dizer exatamente. Qual seria, por exemplo, a relação entre o crescimento da importância do trabalho e a saturação do mercado, mencionada no início do segundo parágrafo? Não fica claro nem mesmo qual foi o raciocínio que o levou a afirmar que “a importância do trabalho vem crescendo absurdamente”. Num texto dissertativo, as afirmações devem ser apresentadas como resultado de um encadeamento de argumentos e não como idéias supostamente evidentes. Em outras palavras, é preciso que o leitor possa recuperar o caminho trilhado pelo autor do texto para chegar a sua tese, pois só assim ele poderá ser convencido, ou, pelo menos, reconhecer sua pertinência.

Se você ainda não estiver convencido de que a redação acima caracteriza um desenvolvimento abaixo da média da proposta, leia atentamente o próximo texto e faça uma comparação.

 

O trabalho: novo instrumento de degradação


Fábulas, provérbios, ditos populares. “O trabalho dignifica o homem”, “o trabalho liberta”. A referência ao trabalho é constante na literatura e em outras formas de expressão ideológica. O trabalho e o homem parecem eternamente ligados. A caracterização de um período histórico, de um modo de produção, da estrutura e da conjuntura de dada época passa necessariamente pela caracterização do tipo de trabalho realizado no período, tanto em relação à sua forma de recompensa – salário, casa ou chibata – quanto em relação à sua produtividade e eficácia. Aparentemente, o homem sempre manteve relações de trabalho. É essa expressão eternizada do trabalho que coíbe a reflexão quanto à validade do trabalho como atividade inerente ao homem.

Primitivamente, o trabalho apresentava-se como necessidade à sobrevivência e seu fruto era repartido coletivamente. O trabalho visto como atividade de mérito e remuneração individual, suprimindo qualquer ideário de comunidade e articulação social é criação recente. O trabalho passou de necessidade imposta para sobrevivência natural a necessidade imposta para sobrevivência social. Com a detenção dos meios de produção por uma única classe – não interessada em qualquer idéia de coletividade primitiva – o trabalho tornou-se a única “propriedade” do proletariado, sua mercadoria para a nova sociedade de classes, sua arma de sobrevivência.

Mas a aceitação do trabalho como atividade digna não foi imediata. Principalmente na sociedade brasileira, onde quem trabalhava (escravos) estava no último degrau da classificação social, e a elite era composta justamente pelos adeptos do ócio (os grandes proprietários).

A visão negativa do trabalho, típica da sociedade brasileira pré-republicana, é um claro exemplo da influência estrutural e ideológica na formação de um conceito definido de trabalho (como degradante ou dignificante). Portanto, até mesmo a visão atual de trabalho como necessidade na formação moral do ser humano nada mais é do que uma adaptação ideológica a determinada estrutura econômica e social que tem no trabalho e na produção de excedentes sua base de sustentação.

Nesse contexto, o trabalho para produção de excedentes se tornou a única opção para inserção social. Dessa forma, o trabalho dignifica o homem, sim, não por sua essência bruta, mas por ser condição obrigatória à não marginalização.

Trabalhar é manter-se vivo. Os desempregados – exército de reserva ameaçador – servem como força externa para coerção do indivíduo a trabalhar cada vez mais, produzir o que não consome, receber cada vez menos, sujeitar-se ao “sistema.”

E o homem, ex-sujeito da história, tornou-se objeto do sistema. A tecnologia, as máquinas e robôs seriam nossa salvação, enfim a liberdade do homem em relação ao trabalho. Ilusão. Tornaram-se apenas novas formas de coerção, instrumentos mais eficazes para mastigar a dignidade e reproduzir a miséria humana. Talvez o movimento ludista estivesse certo: a máquina é inimiga do homem; a máquina, expressão máxima do desenvolvimento técnico humano, potencializa a ambição, geradora da miséria humana.

O resultado da assimilação da tecnologia aos meios de produção ilustra a relação atual do homem com o trabalho. Ao invés de utilizar-se da técnica para libertar-se da obrigação do trabalho, o homem utilizou-a para implementar a produção. O trabalho tornou-se obrigatório e instrumento de opressão e distinção social. O homem não mais trabalha para si, tornou-se escravo do trabalho, num ciclo de imposições sociais que mantém os trabalhadores, como gado, submissos à vontade do patrão. E esse, por sua vez, é uma marionete do sistema, do mercado, do monstro que o homem impôs a si mesmo: a ambição – a mesma que conduziu o conceito de trabalho de atividade dignificante para relação obrigatória e degradante.

Comentários
A idéia central desenvolvida pelo candidato nesta redação é apresentada já no próprio título: O trabalho: novo instrumento de degradação. Perceba, portanto, que o candidato explicita desde o início sua posição diante da proposta temática. Ela coincide com a do autor do texto anterior, ou seja, defende-se novamente a tese de que o trabalho degrada. No entanto, para preparar a aceitação de seu ponto de vista, este candidato, diferentemente do anterior, explora a contradição do tema. Ele chama a atenção do leitor, já no primeiro parágrafo, para o fato de que a aceitação do trabalho como uma “atividade inerente ao homem” impede que se reflita sobre sua validade. É exatamente essa caracterização do trabalho como atividade natural e dignificante do homem que o candidato se propõe a questionar.

A fim de defender sua tese, o candidato busca, num primeiro momento, pôr em questão algumas noções arraigadas e amplamente aceitas sobre o trabalho. No primeiro parágrafo, faz referência a “fábulas, provérbios e ditos populares”, em que o trabalho é apresentado como atividade dignificante, e os caracteriza como “expressões ideológicas”. Esse movimento revela uma leitura bastante crítica da coletânea, na medida em que relaciona ao fragmento 2 os fragmentos 1, 3 e 8 (respectivamente a fábula, o dito popular e o provérbio parodiado por Maguila), em que são evocados alguns dos mentores de ideologias referentes ao trabalho (“...padres, economistas, moralistas sacrossantificaram o trabalho”). O candidato foi capaz de estabelecer uma relação não evidente entre os fragmentos, e essa articulação caracteriza a capacidade de leitura que se espera encontrar no aluno da Unicamp.

Seguindo sua linha argumentativa, o candidato demonstra que a avaliação do trabalho como atividade dignificante ou degradante é historicamente construída a partir de interesses econômicos e de classes e que, portanto, qualquer julgamento de valor sobre o trabalho, longe de ser neutro, está carregado de valores ideológicos. A fim de comprovar a sua afirmação, ele nos lembra de que, há bem pouco tempo, “na sociedade brasileira pré-republicana”, o trabalho era visto como uma atividade degradante, já que era exercida pelos escravos que ocupavam o “último degrau na classificação social”, enquanto a elite (os grandes proprietários) “era adepta do ócio”. Note que, ao colocar em xeque a concepção de trabalho como atividade intrinsecamente digna, o candidato prepara o leitor para aceitar mais facilmente a tese de que o trabalho, tal como concebido e realizado na sociedade atual, ter-se-ia transformado em um “novo instrumento de degradação”.

Afirma ainda que a visão do trabalho como “atividade de mérito e remuneração individual” é recente, já que antigamente o trabalho apenas cumpria a função de garantir a sobrevivência de uma coletividade. Assim, a mudança na relação homem/trabalho seria resultante de uma transformação histórica decisiva e de uma adequação a uma nova realidade econômica, que tem sua base de sustentação na produção de excedentes. Essa mudança teria resultado, segundo o candidato, na transformação do trabalho, de uma atividade digna, voltada para a sobrevivência da espécie, em uma atividade degradante, já que compulsória e opressiva. No momento em que apenas uma pequena parcela da população teria passado a controlar os meios de produção, o trabalho teria se tornado a única “propriedade” do trabalhador, e sua força de trabalho, uma “mercadoria”. Este homem, que não trabalhava mais para si mesmo, teria sido transformado em “escravo” do sistema, e o trabalho, em “instrumento de degradação”.

Neste ponto, percebe-se que o candidato trouxe, da leitura do fragmento 9 da coletânea, a idéia de que seria “sempre pela força que os homens trabalham além de suas necessidades”, sugerindo que, na sociedade atual, essa “força” seria representada pelo sistema e pela ideologia. Dessa forma, o candidato retoma e justifica a idéia, apresentada no início do texto, de que a visão positiva do trabalho seria uma construção ideológica: a noção amplamente difundida de que o trabalho constitui um elemento necessário para “a formação moral do ser humano” nada mais seria do que “uma adaptação ideológica a determinada estrutura econômica e social que tem no trabalho e na produção de excedentes sua base de sustentação.”

Percebemos, assim, que o candidato tem um projeto de texto claro. Poderíamos resumir seu projeto da seguinte forma: a organização econômica da sociedade contemporânea, responsável pela transformação do trabalho em atividade degradante, encontraria respaldo na superestrutura ideológica, que submete os indivíduos a discursos nos quais o trabalho é apresentado como uma atividade moralmente digna e necessária, o que ajudaria a garantir o funcionamento do sistema econômico atual, sustentado pela produção de excedentes, já que os que não se submetem à exploração são marginalizados e excluídos da sociedade. Consistente, não?

Concluindo sua avaliação negativa da atual relação homem/trabalho, o candidato afirma que até mesmo o desenvolvimento tecnológico, que prometia a libertação do ser humano da obrigação do trabalho, serviu apenas para “potencializar a ambição”, transformando-se em mais um “instrumento de opressão” e de degradação do trabalhador. Perceba, neste ponto, mais uma vez, a leitura que o candidato fez do fragmento 9 da coletânea. O desenvolvimento tecnológico, metaforicamente representado pelo machado de pedra, poderia ser um aliado do homem, libertando-o da opressão, por permitir que um mesmo trabalho fosse realizado em um tempo dez vezes menor. Mas a ambição (“o monstro que o homem impôs a si mesmo”) fez com que ele preferisse produzir dez vezes mais no mesmo espaço de tempo. Trata-se de uma argumentação muito bem construída e fundamentada. Ao contrário do candidato anterior, o autor deste texto demonstra ter compreendido a complexidade do tema e demonstra bastante maturidade ao desenvolvê-lo. Esperamos que não tenha restado dúvida de que se trata de uma redação bem acima da média.

Por fim, é importante lembrar que este é apenas um exemplo de bom desenvolvimento do tema, mas evidentemente, essa não é a única opção de desenvolvimento. Com isso estamos querendo dizer que, a partir da leitura do tema e da coletânea, os candidatos poderiam propor diferentes desenvolvimentos, uma vez que os textos da coletânea permitem diversos recortes da questão.

Texto extraído do site
http://www.convest.unicamp.br/vest_anteriores/2003/download/comentadas/CadernoQuestoes2003_fase1.pdf, no qual são comentados mais dois textos acima da média, uma redação anulada e um exemplo de equívoco.