A menininha está puxando o casaco do pai incessantemente, para convencê-lo
a comprar um daqueles livrinhos de capa rosa, com o título em prateado e alto-relevo,
sobre como ser uma princesa, ou algo do tipo, enquanto ele está desesperadamente
folheando as páginas de um livro de auto-ajuda para pais que não sabem ser
pais, “Como cuidar do seu pestinha – Cinco a Oito anos” ou qualquer coisa do gênero.
É uma cena muito engraçada de se observar, um pequeno caos cotidiano. Aqui, na
livraria, é muito interessante observar as pessoas – vêm das mais diferentes, de todas as
faixas etárias – com todos os gostos, valores, modos de pensar. Livrarias têm isso, essa
fusão de gente.
Trabalhando em uma livraria como a Livraria Cultura, uma das coisas mais
divertidas de se fazer é isso, observar as pessoas que passam por aqui. Alguns
perdidos, crianças correndo, gente culta que olha a sessão de CDs, clientes que já são
conhecidos, outros que vêm sempre, olham sempre, mas não compram nada, e até
gente que entra só para ir a um banheiro limpo, ou para tomar um chocolate quente na
lanchonetezinha. Para mim, é como um mundinho artificial, talvez porque eu, estando
aqui, nesta situação, seja um pouco artificial.
Este lugar é super limpo, calmo, as pessoas são, na maioria, bem educadas. Eu
não sou disso, não gosto dessa amenidade toda. Gosto da agitação, da iminência do
acontecimento, a qualquer instante, dos lugares e das pessoas misteriosos, da noite.
Posso parecer menina de família, mas é por isso mesmo que eu sou assim, sem regras,
da noite; para fugir.
À noite, incrível a transformação das ruas. A ‘Paulista’ e a ‘Augusta’ são outra
coisa, após o pôr do sol. As pessoas mudam, os lugares mudam, os acontecimentos
mudam, a maneira das coisas acontecerem e serem muda. Com a noite vêm as
diversões ocultas, os perigos, as risadas. Com a noite vêm os homens, com a noite, vem
o Sam.
Samuel e eu estamos juntos há um tempo, cerca de cinco meses. Não sei bem o
que Sam faz durante o dia, provavelmente trabalha aqui pelas redondezas. Já o avistei,
algumas vezes, comendo no Súbito, um restaurante bem versátil que tem no térreo do
Conjunto Nacional, onde fica a livraria. Não nos falamos de dia. É à noite que ambos
somos um só, enfim. Num só baque.
Nessa, como de costume, saio do trabalho no iniciozinho (não a noite mesmo,
breu) e vou andando até o barzinho onde costumamos nos encontrar. Algumas vezes,
chego e Sam já está lá há quinze minutos e, ao me ver, dá uma balançadinha no copinho
com o líquido cor-de-água, indicando que é reservado à minha pessoa. Desta vez,
porém, entro e reparo de primórdio em um homem sentado no balcão de costas; o
cabelo castanho, algumas mechas desesperadas para relar na gola da jaqueta preta. De
manso, abordo-o pelo ombro esquerdo com a mão direita. Com o que me parece um
susto, ele vira o rosto com agilidade e rispidez, quase como um reflexo.
Durante quase um minuto - que se estendeu em minha mente por tempo indefinido - seus olhos verde-esmeralda e meus olhos preto-jabuticaba penetraram- se, fundiram-se, colidiram-se, coincidiram-se, perderam-se infinitamente em seus infinitos distintos, alternos e conjuntos. Não é Sam. Mas aquele momento acaba de marcar-se em brasa em minhas sinapses cerebrais por o que só pode ser eternidade. Por dentro, estremece meu corpo. Viro-me lentamente e respiro fundo, de olhos não só fechados: espremidos, como se isso tudo fosse errado. Como que para tentar afugentar a sensação desconhecida e perturbadora que agora tenta me penetrar, se apossar de mim, como que tentando lutar contra o invencível.