Currículo e autonomia do professor

A temática da autonomia do professor ganha relevância em um momento em que se discute a aprovação, para todo o Brasil, de uma base nacional comum curricular (BNCC), que elenca temas obrigatórios a serem abordados por cada uma das disciplinas da Educação Básica. Além disso, professores podem estar sentindo sua possibilidade de autoria e autonomia ameaçada com situações como a difusão de diversas metodologias alternativas, que acabaram sendo adotadas de forma obrigatória em algumas faculdades, com as propostas de ingerência e controle de temas ministrados em aulas feitas pelo movimento “Escola Sem Partido” e mesmo com a Reforma do Ensino Médio, com sua definição de itinerários formativos.
Paralelamente, e em sintonia com esse contexto, nós, professores do Colégio Santa Cruz, nos encontramos imersos em diversas discussões e reflexões a respeito de mudanças curriculares. Seja pela inserção de diversos cursos optativos para as séries iniciais, seja pelo papel cada dia mais central que os estudos do meio ocupam, no EF2, seja pela criação das disciplinas eletivas no EM, seja pelo espaço das reuniões de verticalidade, que aproximaram as disciplinas nos diversos cursos, estamos todos envolvidos na questão de “qual é o nosso papel na construção e na elaboração desse novo currículo que está se desenhando no Santa?”.
Procurando alguma resposta no Plano Diretor, documento de referência da escola, encontramos a explicitação de que cabem aqui as diferentes vozes, desde que afinadas e harmônicas:
“É preciso afirmar a polifonia nestes textos que traduzem o espírito do Colégio Santa Cruz, não somente porque eles buscam convidar à diversidade e pluralidade de vozes e frases; mas, sobretudo, pelo que ela, polifonia, pressupõe de coesão, de harmonia, de consonância”.
"É dever da escola insistir nesse projeto de composição coletiva e reiterar o convite ao contraponto que pressupõe coesão, harmonia, liberdade de criação fundada no princípio universal de que diversidade não é confronto, menos ainda intolerância".
Conforti, Cristine. Unidade Polifônica: o exercício do contraponto no Colégio Santa Cruz in Plano Diretor 2016, p 10.
Para entender melhor essa pluralidade de vozes, ainda mais no contexto de um grupo de 40 professores dos diversos cursos da escola, que eventualmente nem se conheciam, buscamos uma estratégia para retratar minimamente os diferentes pensares sobre o tema.
Cada um de nós, convocado a apresentar nossa escola para alguém, em uma única palavra ou expressão, completou as três frases abaixo, em um aplicativo que conta incidências de palavras e as expressa pictoricamente.
Se você for apresentar nossa escola para alguém em uma única palavra ou expressão:
1) O currículo do CSC é ________________________________
2) No CSC, o espaço de atuação do professor é _______________________
3) No currículo do CSC, eu mudaria _________________________
A atividade tinha por objetivo gerar representações de como aquele grupo de educadores pensava o currículo da escola, de uma forma mais espontânea e sem reflexão prévia.
O que vimos, representado em três nuvens de palavras, em que o tamanho relativo das palavras mostra sua frequência nas respostas, foi que nosso currículo é visto como diversificado e consistente, mas também – ou por isso mesmo – desafiador e exigente. O espaço de atuação do professor é visto como amplo por parte significativa do grupo, mas como limitado por outra. A ideia de que esse espaço de atuação é coletivo, a ser exercido e conquistado pelos grupos de professores, também está presente na nuvem. Na pergunta sobre o que mudariam no currículo, o grupo expressa mais sua heterogeneidade e a questão do “excesso” aparece de forma mais enfática: seja porque os professores gostariam de trabalhar com menos conteúdo, seja porque gostariam de ter mais tempo ou maior flexibilidade.
O CURRÍCULO DO CSC É:

O ESPAÇO DE ATUAÇÃO DO PROFESSOR É:

NO CURRÍCULO DO CSC, EU MUDARIA:

Continuando nas metáforas musicais, que, aliás, acabaram percorrendo toda nossa conversa, buscamos nos afinar em relação às expectativas de trabalho e aos termos/conceitos que usaríamos recorrentemente.
Reiteramos que a escola tem um compromisso com a formação de seus alunos e que este é pautado pela ética e inserido na sociedade de seu tempo. Valoriza o passado, seus saberes e valores e coloca-os em diálogo com o presente, seleciona o que é relevante na contemporaneidade e aponta para o futuro. Essa formação é pautada pelo currículo escolar, que se realiza na articulação dos conhecimentos instituídos da cultura humana, os conteúdos escolares, o reconhecimento dos afetos próprios da faixa etária dos alunos e a concepção de cidadão que norteia nossos objetivos.
Educar implica escolher conteúdos, estratégias, objetivos e posturas. A escolha do currículo é, nesse sentido, a essência da educação oferecida por uma escola. É o corpo de escolhas que vai desde as diretrizes da direção até as opções dos professores, respeitando as tradições, as legislações e acrescentando inovações. Currículo nessa concepção é bem mais do um programa de disciplinas ou uma lista de conteúdos. São todas as escolhas escolares que impactam na formação dos alunos visando aos objetivos formativos. É tudo o que norteia ou dá intenção à ação educativa na escola. No nosso caso, falamos com algum orgulho da formação humanista, do desenvolvimento de um pensamento crítico e articulado com seu tempo, de uma consciência de contribuição para a sociedade em que se vive.
Vale recuperar a definição de currículo presente nas diretrizes curriculares do ensino médio:
Art. 6º O currículo é conceituado como a proposta de ação educativa constituída pela seleção de conhecimentos construídos pela sociedade, expressando-se por práticas escolares que se desdobram em torno de conhecimentos relevantes e pertinentes, permeadas pelas relações sociais, articulando vivências e saberes dos estudantes e contribuindo para o desenvolvimento de suas identidades e condições cognitivas e socioafetivas.
(Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, 2012)
No entanto, nem sempre os documentos curriculares oferecem espaço de autoria para os docentes. Sacristán ajuda a sair do imobilismo que algumas vezes o contexto parece reservar ao professor:
“...não é o currículo em si que constitui um plano escrito, mas seu desenvolvimento. O primeiro é como se fosse a partitura, o segundo seria a música que é executada. Ambos guardam uma relação entre si. Embora sejam coisas distintas. Com base na partitura, podem ser desenvolvidas ou executadas músicas diferentes”.
(SACRISTÁN, J. G. "O que significa o currículo" in SACRISTÁN, (org.) Saberes e Incertezas sobre o Currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p.25).
A sensibilização experimentada pela escuta de dois trechos selecionados de uma mesma música interpretada por diferentes maestros (segue link abaixo) pode ilustrar a força e a aproximação do real que tem essa imagem retórica.
Ouça as diferentes versões da Sinfonia de Beethoven.
Giuseppe Sinopoli:
Wilhelm Furtwangler:
Giuseppe Sinopoli e Wilhelm Futwangler:
Buscando novamente no Plano Diretor a partitura que rege nossa ação, os professores deste grupo reconhecem as diretrizes e sentem que sua prática é, efetivamente, pautada pelos princípios nele enunciados. Mesmo valorizando o convite explícito ao contraponto, expresso no trecho citado anteriormente, os educadores do grupo assinalam que não é raro que, em documentos institucionais, os conflitos fiquem apaziguados. Nas escolhas que se realizam na dimensão concreta do currículo, ocorrem disputas de sentido, que têm a ver com intervenções de diversas ordens e de diversas instâncias institucionais (professores, coordenadores, diretores) nessa realidade.
Ainda que haja essa disputa, os professores valorizam a ideia de que é necessário haver intenções pedagógicas unívocas na instituição, para que não existam “diferentes escolas na mesma escola”, e que o currículo tem o papel de tornar público o projeto do colégio. No entanto, reforçam o cuidado que se deve ter para que a identidade institucional não se torne uma amarra: o movimento de pressionar “as bordas” do estabelecido na instituição é válido e importante. Para isso, há que se contar com os questionamentos e com o olhar atento do professor para os direcionamentos assumidos.
Professores mais antigos na casa contaram para os demais que o Colégio começou como uma escola experimental e sua trajetória passou por diversas mudanças ao longo do tempo. Eles perceberam que essas mudanças, muitas vezes,começam ou se efetivam de forma mais nítida nas séries iniciais. Um exemplo claro diz respeito à mobilização que vem acontecendo para que a EI e o EF1 passem a ser mais inclusivos e contemplem as crianças com necessidades educacionais especiais. Percebem, também, mais entraves e pressões nas séries finais da escolarização. Identificar-se como uma escola de excelência – identificação percebida pelos professores dos diversos cursos – pode ser ao mesmo tempo um impulsionador para a busca de novos caminhos e um entrave a eles.
Provocado sobre as mudanças – as que se percebem em curso e as que se desejam - o grupo trouxe à tona três importantes temas: o espaço do coletivo dentro da escola, a adoção de novas disciplinas optativas, eletivas ou transdisciplinares e a estrutura de tempo/espaço sobre a qual a escola está assentada.
O grupo sente que o espaço do coletivo dentro da escola ainda é reduzido e que é necessário revalorizar e ressignificar essa instância de trabalho. Nesse sentido, o fórum da verticalidade tem grande importância, por ser um espaço no qual escolhas de abordagem, temas e encaminhamentos podem contar com o referendo de várias vozes, em busca de consenso ou acordos.


A partir desse “afinar coletivo”, o grupo de trabalho dividiu-se em subgrupos temáticos, cujas ricas discussões serão, necessariamente, minimizadas neste esforço de síntese que segue.