Ideologias e prática docente

A proposta
Em 399 a.C., a cidade de Atenas assistiu à condenação de um de seus mais célebres pensadores. Sócrates, aos 70 anos de idade, enfrentou a pena capital sob a acusação de “não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado” e por “corromper a juventude” ao divulgar suas ideias. Aquele episódio, fundante do pensamento ocidental, carrega a marca do difícil convívio entre o pensamento e o dogma. Nos alerta também para o irresistível apelo do controle do Estado sobre a liberdade do debate, da troca de ideias, do pensamento crítico e da contestação. Dos grandes processos inquisitoriais que vitimaram Giordano Bruno, Galileu Galilei ou Paolo Veronese, passando pelo macartismo estadunidense nos anos 1950, ou pelos processos de Moscou, o controle dos Estados sobre a circulação de ideias sempre denotou o poder emancipatório da razão e do pensamento. Hoje, a jovem democracia brasileira procura se consolidar em meio a turbulências, daí a preocupação com o surgimento de projetos de lei que visam questionar o papel da escola como local de formação política, como é o caso do chamado “Escola sem Partido”.
O tema da ideologia no ambiente escolar tem sido objeto de discussão em diversas ocasiões de debates pedagógicos, mas recentemente, ao ser encampado sob a forma de Projetos de Lei, e sob os auspícios de lideranças políticas de destaque, tornou-se ainda mais urgente, por ameaçar a forma como a escola se constituiu como espaço da “episteme” em oposição à esfera pública, se vê marcada também pelo domínio da “doxa” (ou senso comum). O tema, antes restrito aos espaços acadêmicos especializados, tornou-se de interesse geral, sendo objeto de artigos jornalísticos e matérias televisivas. Sobretudo nos últimos três anos, tornou-se recorrente até mesmo entre pais e alunos. Assim, o grupo de trabalho que se dedicou a organizar uma mesa-redonda/plenária focada no tema da ideologia no âmbito do Congresso do Santa Cruz, realizado em janeiro último, procurou elencar temas correlatos e desenhar estratégias para facilitar o debate sobre o tema da ideologia associado às práticas docentes.
Desta vez, o objetivo foi abordar não apenas a fortuna crítica que se vem acumulando ao longo dos últimos anos de debate sobre o assunto, mas, sobretudo, privilegiar a experiência e a vivência do nosso corpo docente, que se defronta com questões relativas ao enquadramento ideológico nos diversos ciclos do ensino e nas mais variadas disciplinas. O desafio do grupo era pensar num formato que ampliasse as vozes e facilitasse a troca de ideias no âmbito da realização do Congresso, conferindo papel mais ativo aos participantes. Como conceber respostas a uma demanda por educação “sem ideologia”? Como preservar o espaço escolar como local de atuação política (não partidária)? Como os docentes têm vivido estas novas demandas em seus cotidianos? Como um conjunto de profissionais dedicados aos temas pedagógicos poderia pensar propostas frente aos novos desafios dirigidos ao espaço e ao público escolar? Como aproveitar a fortuna crítica que se vem acumulando sobre o tema com a finalidade de balizar e aprimorar as práticas docentes? Como preservar o espaço de pluralidade que deve ser a marca do ambiente escolar? Estas e outras provocações compuseram o escopo de discussões que o tema da ideologia impõe aos profissionais de educação.