Os professores-narradores

Os professores são sujeitos de experiência que compartilham perguntas, buscas e narrativas. O roteiro se realizou sobre essa premissa e seguiu o itinerário apresentado abaixo.
- A caminhada pela memória coletiva: narrativas. O que realizamos na pedagogia do Santa sob a perspectiva da experiência?
- Há diferentes níveis e qualidades de experiências. O que é de âmbito restrito, individual, e o que é coletivo, partilhável?
- O que queremos e não fazemos ou não sabemos fazer?
- É possível a confluência ou a convivência viva e criativa entre as três vias de educação (ciência/técnica; teoria/prática; experiência/sentido)?
- A caminhada do real à utopia.
Sucessivamente, os professores foram assumindo a palavra e cada um contou uma história/estória sobre a vida na escola.
Narrativas dos professores compartilhadas oralmente no grupo e rearticuladas em texto polifônico
Viagens
Viagens de estudo do meio com as crianças ensejam, por vezes, uma experiência estética. Fora da sala de aula, elas são diferentes. Mergulham em São Luiz do Paraitinga, vivenciam a cidade em outros tempos e ritmos. Nos botes, sob o som da cachoeira, os rostos expressam êxtase!
Em Barra Bonita, conversam com os moradores, brincam com os cachorros na rua, são tocados profundamente pela simplicidade, pela descoberta de uma realidade até então desconhecida. Experenciam a liberdade de um novo brincar.
Em anos anteriores, a visita a fazendas do Oeste paulista era completada com uma palestra do proprietário, que não contagiava as crianças, não as provia de uma relação de experiência. Professores propuseram, então, uma teatralização da visita: as crianças incorporavam, nesse espaço, o cenário de outros tempos, enquanto atuavam no papel de administrador em seu acerto de contas com os empregados imigrantes. O teatro se abria em experiência real, culminando com a revolta dos “imigrantes” diante da injusta contabilidade. Vida e história se entrelaçam nessa cena...
A surpresa permite uma abertura para o novo. O encontro acontece por efeito do deslocamento inabitual. O tempo se estende para além das antigas fazendas e se abre para os jardins da escola, onde as crianças se detêm desenhando um pé de café e narrando histórias de suas famílias.
Houve certa vez, numa visita ao centro de São Paulo com a 8ª série, uma experiência de radical desautomatização: cada aluno e cada professor, juntos, incorporaram o flâneur que narra enquanto vaga, ou que perambula enquanto articula histórias. Em plena Rua Barão de Itapetininga, as dezenas de alunos, vestidos com suas ensolaradas camisetas amarelas, observavam as marcas da arquitetura e os personagens urbanos. Um desses, morador de rua, de súbito se espantou com o grupo de adolescentes estrangeiros ao local e exclamou em voz alta: “O que é isso? Estourou o saquinho de fandangos?” (Ou ele teria dito “ cheetos”?) Os risos gerais responderam à pergunta. A frase inesperada do morador de rua alcoolizado gerou outro conteúdo, novas discussões; o tempo de estudo se distendeu. Todos foram capturados por esse fragmento da narrativa da cidade. Um aluno abraçou o personagem urbano — quase sempre invisível ao passante automático —, em um ato espontâneo e emblemático da diferença que aproxima. O estranhamento foi mediado pelo humor, e as experiências diversas foram compartilháveis na cena viva da cidade. Mais tarde, o jovem flâneur das ruas paulistanas escreveu a cena experenciada e apresentou-a em uma celebração de Ensino Religioso.
Perigo
Era a época da hegemonia da marca Abercrombie nas camisetas dos jovens. Teve o caso de um aluno critico, questionador, que rejeitava frontalmente a professora de Filosofia. Passaram-se três meses de aula. Quando ela propôs que ele fizesse um seminário abordando a crítica dos meios de comunicação – especialmente a propaganda –, o jovem escolheu como subtema a propaganda subliminar. A apresentação foi feita na penumbra da sala em que ele projetava ilustrações e vídeos e, pelas frestas fugidias da luz das imagens, faiscava o logo da Abercrombie impressa na camiseta que ele vestia, sem intenção crítica, mas sim como inocente submisso à etiqueta dominante. A professora comentou o trabalho e, ao final, ironizou a propaganda explícita e nada subliminar que ele havia feito da Abercrombie, em clara contradição com o discurso crítico. O aluno respondeu com a agressividade cotidiana. No dia seguinte, porém, procurou a professora para se desculpar; fez a autocrítica, confidenciando o ato falho de sua escolha imponderada. “O aluno quer ser olhado. A sala de aula pode ser o espaço que enseja uma experiência de perigo e de flagrante subjetividade.”
Professor
Professores são múltiplos atores de variadas máscaras, dependendo do público-classe de estudantes. A sala de aula é um cenário de surpresas que exige improvisação, para além do texto ensaiado. Professores são permanentemente narradores que buscam fragmentos de realidade e vivência que podem se tornar experiências ressignificadas. Por vezes, não controlam nem percebem quando e como as experiências se constroem. O uso que os alunos fazem do que a escola oferece escapa no cotidiano das aulas ou até mesmo se traduz como negação, quando a experiência possível é tratada como meio de enriquecimento de portifólio pessoal.
Tempos
A mitologia ajuda a entender e estender o tempo. Cronos é o tempo compactado; Cairós, o destendido. O risoto que a mãe fazia era o do tempo distendido: simples (uma só receita) e único (o professor-filho nunca conseguiu imitar). Esse professor ensina literatura, muitos textos em um ano letivo compactado. Quando se iniciou a leitura de Dante, ele propôs um “estudo do meio” no Inferno. A descida por todos os círculos, na sala de aula, contava com forte apoio sinestésico: sons, luzes, imagens projetadas, versos. Havia uma classe, em especial, resistente, blasé. No dia seguinte à manhã infernal, ao chegar à porta da sala, o professor deparou com um pequeno cartaz colado ao vidro da porta: “Deixai todas as esperanças, vós que entrais!”. Uma aluna explicou a intervenção. Eles criticavam a rapidez da viagem. Reclamavam não ter ainda passado da porta, precisavam experimentar mais, mais lentamente, cada estudo sobre os círculos do Inferno. O professor aceitou o pacto. Entendeu que, constrangido pelo tempo, queria levar os alunos rapidamente ao século XVIII, enquanto eles queriam degustar a viagem dantesca. A experiência permitiu, após a crise, emergirem naquela sala poetas, cartunistas, grafiteiros e críticos em variados trabalhos sobre o Inferno de Dante, bem como alterou a programação do curso prevista para o ano seguinte. “Eu não estava preparado para isso”, conclui o professor. “A desautomatização gera a sensação de perda do controle. Pura experiência!”.
Existe um tempo de qualidade, o do olhar que respeita o tempo e se abre à experiência. Foi em Recife, no Encontro Nacional dos Estudantes de Pedagogia. No último dia, em vez de ir à praia ou visitar pontos turísticos, o professor – que era membro de um grupo de maracatu – resolveu ir até Igaraçu conhecer D. Olga, da Nação Estrela Brilhante. A cidade: pessoas sentadas na rua, galinhas soltas, casinhas coloridas... afinal a casa da D. Olga. Ela não estava. Os filhos receberam o professor, mostraram as árvores que forneciam material pras alfaias, ofereceram cachaça de jenipapo, conversas. D. Olga não chegava, nem chegou. Escureceu, e ele nem tinha percebido que o dia escoara. Saindo da velocidade que o impulsionou, sentiu-se abraçado por outro tempo. É um desafio para a escola encontrar esse tempo que regula certos lugares, que expressa essa natureza com suas pausas, seus ritmos.
Existe também o tempo revisitado. A professora reencontra no Fundamental 1 um aluno da Educação Infantil, que lhe revela lembranças marcantes de seus 5 anos no projeto da Horta, que ela havia conduzido.
No Fundamental 2, a aluna parecia impermeável à participação em atividades coletivas, especialmente nas vinculadas à ação social. Anos mais tarde, já no Ensino Médio, o reencontro com a professora que tanto insistia para que ela se abrisse à experiência desvela a surpresa: a aluna recupera a experiência que parecia perdida. Conta que, depois de ter viajado à Amazônia, compreendeu o alcance do projeto, que estimulou sua atual dedicação aos trabalhos sociais.
Arte e Vida
Os adolescentes escolheram aprender a street dance. A professora não queria que o curso se restringisse à sequência de aulas com coreografias e ensaios até a apresentação final. Propôs a experiência da descoberta desse universo: uma viagem pelos livros e internet que desenhasse a história dessa dança. Além disso, os alunos criariam textos poéticos sobre o tema, ampliando os conteúdos com uma parceria autoral, investigativa e criativa, sobre o tema.
O professor de Artes levou os alunos do 7o ano ao MASP. A tarefa consistia, nesse momento, em apreciar as imagens e escolher uma obra para em seguida redesenhá-la a partir da observação e da coleta dos dados técnicos. O trabalho posterior se completava em uma produção coletiva – de transfiguração das imagens captadas – que poderia incluir a interferência imagética de temas contemporâneos. Permeando a criação artística, os alunos trouxeram questões humanas, como gêneros, feminismo, drogas, religião, consumismo etc. O resultado técnico e expressivo era de muita qualidade. Entretanto, um grupo de meninas deixou uma explícita mensagem textual a favor da legalização da maconha sobre a imagem. Sem tempo para uma discussão mais aprofundada, o professor optou por não expor esse trabalho, com objetivo de preservar as alunas de eventuais críticas infundadas. No momento da abertura da mostra de trabalhos, foi notável a reação de indignação e, sobretudo, de tristeza e inconformismo por parte de uma das integrantes do grupo. Dias depois, o professor foi chamado pela orientação educacional para conversar sobre o assunto: a família, constituída de advogados especializados em liberdade de expressão, demonstrou sua indignação pela "censura". O episódio serviu para repensar o encaminhamento da proposta. O tema da liberdade de expressão invadiu o espaço da linguagem artística e se fez experiência de diversidade.
A professora de artes do EJA propõe aos seus alunos adultos, distintos do universo da infância e adolescência do curso regular, que recuperem a memória de suas experiências e as transfigurem em tessituras, alinhavos, bordados que narram a vida em cores e linhas.
Identidade e alteridade
Trabalhar no EJA é uma experiência de alteridade radical, um convite contínuo à não automatização, ao abalo permanente. Assim é que, certa vez, alunos do Ensino Médio (do curso regular) estagiavam em uma classe do Fundamental 2 do EJA. Eles chegavam imaginando: “vou dar aulas, vou ensinar o que eles não sabem”. Surpresa! A relação clássica se subverte. Os jovens do Ensino Médio diurno percebem que têm mais a aprender que a ensinar: “não tenho nada a fazer aqui”, diz um deles, depois de assistir a uma reunião dos alunos do EJA na qual ele não assumiu o que considerava ser uma “participação real”. Ao estudante estagiário foi argumentado que a mera observação — uma abertura à paisagem nova das pessoas diferentes — constituía uma experiência, ou parte dela. Mesmo assim ele desistiu do estágio.
O projeto “Liberdade e Consumo” era um dos conteúdos da programação do EJA. O tema seria discutido por meio da análise de propagandas com objetivos de formação crítica desses estudantes maduros com padrão de consumo baixo, bem como de aprofundamento das questões sociais e econômicas contemporâneas que os envolvem de forma especial. Durante a apresentação, alguns alunos se incomodaram e se opuseram à tese do consumismo como alienação. O argumento era “se pudermos consumir, seremos mais livres; o objetivo é chegar a ter condições de consumir o que hoje não posso”. A tese surpreendeu uma professora que, possivelmente, deixou entrever aos alunos sua perspectiva pessoal de que o consumismo tolhe a liberdade. Uma das alunas, cuja profissão era empregada doméstica, levantou a questão crucial: “podemos chegar aonde queremos, ou quando a gente faz uma pesquisa já tem um lugar aonde a gente tem que chegar?”
O tempo para as crianças na Biblioteca é curto. Restringe-se ao intervalo da tarde, período em que eles buscam leituras interessantes no acervo restrito. Havia um menino que frequentava esse tempo com desvelo e entusiasmo. Todos os dias, trazia um amigo novo para compartilhar daquele espaço. Sua leitura predileta era o livro do Guiness: puro encantamento. A bibliotecária um dia o recebeu com o Guiness do ano de nascimento dele. Foi uma experiência de êxtase. Ele se emocionou ao descobrir o contexto de seu “vir-ao-mundo”, localizando-se na história e constituindo-se uma identidade singular.
A professora da Educação Infantil tem um aluno que pouco fala. As palavras lhe são difíceis, assim como as tarefas escolares. Todavia, essa criança traz em seu olhar um universo de entendimento tácito. A professora também é avessa a discursos e prefere conversar com outros recursos, que não a fala. Diariamente ela se senta ao lado do aluno para ajudá-lo a caminhar nas fichas. Ela o olha, ele a olha, ambos se observam, mergulham no dizer dos olhares e se entendem, conversam no silêncio.
Os alunos estão descalços e com o rosto coberto. O professor reconhece a todos, pelos pés.
Professores-alunos
As memórias do aluno ressurgem no presente do professor. Ao lado daquele que se lembra do encontro luminoso e motivador entre infância e escola, está seu oposto, o professor que recorda experiências de desencontro e insegurança compensadas pela liberdade sábia das brincadeiras de rua.
No colégio onde ele estudava, tinha uma piscina, que não podia ser usada pelos alunos não pagantes. Segregados do outro lado da cerca, os colegas mais pobres só espiavam. Eis a experiência como aprendizado da desigualdade econômica dentro do espaço escolar.